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Andando calmamente pela calçada, a casquinha continuou em suas mãos. No chão, duas bolas de sorvete estavam uma ao lado da outra.
Encostou-se na parede da casa número 1813. Olhou para o rastro deixado em seus dedos pela queda do sorvete e para a casquinha vazia. Fechou os olhos e, quando voltou a abri-los, percebeu que o sorvete já não era mais verde e imóvel, mas preto, marrom e vermelho – e se mexia. Não se perguntou de onde saíram as formigas. Dentro de sua cabeça apenas conseguia pensar na inevitabilidade e irreversibilidade das ações e na impotência do homem perante o tempo. A incapacidade de seguir em frente, não apenas por se arrepender do passado ou não conseguir deixa-lo passar, mas também pelo medo de saborear o futuro em razão de sua estranheza; não era o futuro a síntese maior do desconhecido?
“O que eu estou fazendo?”
Foi apenas uma sorvete que caiu, mas ali viu-se questionando toda a sua existência.

Zex.


- A verdade é que você me enxerga de um jeito diferente. Sim. Sinto-me como uma fraude de mim quando percebo que não sou aquilo que imagino ser. É como naquela música, entende? Para mim, escutar você falando sobre mim é ver que o personagem que eu imaginei ter criado não passa de um eco.
- Como se você não conseguisse atingir os objetivos de personalidade que você sempre imaginou atingir, de forma inconsciente.
- Quero dizer, se você não consegue representar a si mesmo como é que os demais esperam que você possa fazer coisas grandes? Falhar na atividade mais simples do existir, que consiste em apenas ser, não passa de uma grande piada.
Eles se olham por apenas um momento. X deseja o mais simples reconhecimento de Z. X deseja dizer que não se sente mal por não passar de uma fraude de si porque gosta da forma que Z lhe vê. X deseja segurar a mão de Z suavemente.
Contudo, X não pode.
Era um conforto saber que, talvez em realidades alternativas, talvez Z lhe amasse.

as ideias andam tão embaçadas e oleosas quanto as lentes dos óculos,
as orelhas, tão empoeiradas quanto os livros da prateleira. 
as mãos quentes da mesma forma que a preocupação, 
os olhos tão cansados quanto a alma. 

as negativas mantém-se as mesmas.

poema da viagem rodoviária

duas almas se encontram
entre o nível entre a terra e o céu
e o diálogo completa e
as transforma em boas amigas

separadas são pela salvação.


ou esquecimento?
 

Das reticências

linha separatória
portões entreabertos.
o tremor ansioso que habita
a comissura dos teus lábios
me desassossega.

O esboço ou a "galáxia dos geradores de mentiras"

- Amigo, vamos combinar de nos entorpecer um dia desses?
- Entorpecer?
- É, nos drogar com as lícitas! Inflamar os nossos corpos e dar adeus ao juízo moral. Fazer o que em nossa juventude éramos loucos para fazer, e que fazíamos do mesmo jeito porque o proibido é sempre mais atraente. O que, quando nos mudamos para fazer faculdade, nossas mães imploravam para não abusarmos. O que nossas esposas e filhos detestam que façamos, alegando que ficamos irreconhecíveis depois de seu uso!
- Você está me convidando para beber?
- É, tomar uns drinques, entornar as garrafas. Qualquer dia desses! Vamos filosofar na mesa externa de um barzinho. Dizer o que não temos coragem de dizer quando estamos sóbrios e seguindo o bando. Até cantar aquela mulher que faz o nosso tipo porque teremos uma desculpa palpável para as nossas ações. Também poderemos colocar as nossas emoções e frustrações para fora, coisas que não temos o direito de fazer em sã consciência, pois o gênero não permite... E, é claro, brigar à vontade com todos e alegar amnésia no dia seguinte. Essa desculpa sempre funciona, não é?
- Meu amigo... posso pensar na sua proposta e lhe dar uma resposta depois?
- Tem certeza? Corremos o risco de não nos encontrarmos novamente.
- Eu tenho o seu telefone anotado na minha caderneta.
- Então tudo bem. Até mais ver.
- Falou.

Outono

viu ali uma desculpa para as suas lágrimas
quando pétalas de flores e
libélulas
começaram a voar sobre a rua.
"é tão bonito", ela diz.
os outros achavam graça;
ela sentia alívio. 

Eu sou ótima

Ela para em frente ao portão e observa sem curiosidade as folhas sendo levadas pelo vento. Leva as mãos à boca e sopra-as com a intenção de esquentá-las. Fecha os olhos e o seu rosto fica paralisado em uma expressão de dor profunda por poucos segundos. Então, recupera-se e põe os pés dentro do cemitério onde seus irmãos estão enterrados.

A garota do panfleto de lanchonete

Ele literalmente pensa em reticências enquanto passa a mão pelo cabelo, e pisca os olhos como se não tivesse a intenção de abri-los novamente. Quando o faz, encara a pasta em seu pen drive onde estão todos os seus projetos inacabados. Segura o rosto com a mão enquanto rola a barra lateral da página, lendo cada título e a última vez em que cada arquivo foi alterado.

Um minuto atrás. Cinco horas atrás. Três semanas atrás. 

Quatro anos.

Senta-se ereto na cadeira e encara o arquivo mais antigo com uma sensação apreensiva no peito. Isto acontece todas as noites desde os últimos quatro anos.

Ele abre o arquivo e fecha os olhos, respirando o mais fundo que pode antes de prender a respiração e ler as poucas linhas.

Poema 10.4

eu estou sentindo
o vazio e o eco
do que é sentir demais.

eu estou vivendo
o desânimo e o ócio
do que é possibilitar-se demasiadamente.

(eu estou
tentando
existir.)

Poema 10.3

é tão fácil tu te esqueceres de um rosto
quando tu não consegues nomeá-lo.
vejo-te em todos os lugares
e desejo que eu não soubesse o teu nome.

Poema 10.2

nada além de bolotas de poeira
nada além de bolotas de
nada além de bolotas
nada além de
nada além
nada.

Poema 10.1

o tictac nunca saiu dos relógios.
ele está dentro de mim,
medindo o tempo em um compasso inaudível.

e a cada vez que sinto o meu coração
esmurrar o meu peito
sei que mais um minuto se passou
(implorando para
a bateria
se esgotar).

Estar Se Preparando

se as portas não rangessem,
eu fugiria enquanto todos estão dormindo,
e eu não olharia para trás
porque o conceito já estaria morto. 

Sobre pares e meios

São raras as vezes em que tenho certeza de que não há um, mas dois monstros diferentes partilhando o meu ser — mas não de forma igualitária.
Um deles vive manso, raramente aparece. Quando vem, me deixa desconfortável comigo e com todos, incapacitada de dar um passo de 0,5 milímetro sem me perguntar contínuos "por quê", "para qual necessidade". A única vontade é a de me deitar em qualquer lugar e lá permanecer por horas, semanas. Anos.
Mas eu não o detesto; eu o estimo. Ele foi o segundo que mostrou interesse por mim e se mudou há poucos anos. Apesar de tudo, ele me faz bem. Ele é o completo oposto do ser que me habita desde que me entendo como ser vivo e pensante. 

Poema #29

o maior medo do ser humano,
aquele que o aflige o tempo todo,
mesmo imperceptivelmente,
é a falta de controle.

o vácuo 
de dominação nula
no outro. 

a impotência
em frente a natureza.

sente-se nos ossos.
é assustador, 
não é?

Poema #26

quando a linha entre a
genialidade e a loucura
aparece?
será que ela realmente existe,
ou não passa de um mito?

Poema Falso-23

como aquele coelho de Alice
posto-me a dizer
atrasado atrasado atrasado.

o que é, afinal, o atraso?
como medimos o tempo?
ele é real,
ou um produto imaginário?

não, não há tempo
para divagações;
eu estou
atrasado atrasado atrasado.

Poema #22

a sensação de vazio está
tão intensa,
tão enraizada,
que escuto os meus próprios
ecos.

Poema #21


a existência nada mais é do que
compostos consequenciais.
somos todos dominós
esperando a nossa vez de
tombar.

Poema #20

"a luz não protege você de nada...", disse a bisavó
sentando-se na beirada da cama do primeiro bisneto.
"mas a escuridão...
ela é perigosa, bisa!"
a mulher joga a cabeça para trás,
mirando a luminária em forma de castelo.
"a escuridão não oferece a você nenhum perigo...
tudo o que há nela, há na luz. e o inverso também."
ela ri com o vinco que se forma no meio da testa da criança.
"um dia você vai entender que os acontecimentos são inevitáveis.
que estarmos no escuro ou na luz não os impedirá de acontecer."
ela lhe dá uma batidinha simpática nas pernas,
o esforço que ele exerce para tentar entender é tocante.
"mas...
até você chegar lá, 
os guardas de seu castelo protegerão você."

quando o menino se vira para mirar a parede
e abraça a pelúcia com mais força,
ela se levanta e caminha até a saída.
quando segura a maçaneta da porta
pode jurar que vê um brilho diferente saindo da luminária. 

sorri.



Poema Dezenove

dois desconhecidos sentam-se 
lado a lado 
no balcão de um bar pouco movimentado.
"não costumava ser assim, sabe", disse o primeiro,
"mas desde que aquele pub moderno abriu ali
na esquina
quase ninguém vem para cá."
o segundo acena e volta a se concentrar na bebida,
no futebol passando na televisão,
no barulho dos carros do lado de fora.

o segundo desconhecido só quer esquecer-se do dia.
da briga com a esposa logo de manhã,
de ver seus trigêmeos chorando enquanto acenavam para ele,
dentro do carro da mãe,
a caminho da escola; 
dos estresses no trabalho,
do smoothie que deixou cair no terno na pausa para o café,
no finalzinho da tarde. 
ele não conseguiu se focar na reunião com a companhia da capital.
só conseguia pensar em sua mulher,
nos insultos,
no inferno em que estavam colocando os filhos. 

deus, onde ele estava com a cabeça?

Poema #18

remexendo em alguns pedaços de papel antigo,
encontrei uma anotação do primeiro feriado de novembro.
eu digo que me senti ligeiramente mal
e, na noite seguinte, foi como se eu fosse
pura e somente
energia (luz)
de tão infinita.

pus-me a refletir, então
para onde foi todo o sentimento?

Poema #17

há um momento em que tu
finalmente
percebes que moras com fantasmas.
revivendo todas as lembranças,
tu te dás conta de que nada se manteve
e de que hoje tudo se esvaiu. 
tu estiveste dividindo a tua pensão mental com eles há tanto,
tanto tempo
que mal se deste conta do quão solitário realmente 
és.

Poema #16

você já sentiu falta,
mas uma falta constante,
intensa e esmagadora,
do que nunca aconteceu?

você já conseguiu admitir que,
na maioria das vezes,
só sente saudade de uma memória? 

você já parou de negar que
gosta mais da ideia das coisas
do que de suas formas físicas?

e, se não, quando?

Poema Falso-15

são tantas ideias perdidas no playground ao redor do teu pensamento
tantas genialidades excluídas porque não foram usadas no momento certo
e depois só há lamúria
sobre o tempo perdido.

Poema #14

oh, ando em três vias distintas.

a Primeira diz:
"claro que você não superou!
no fundo, continua sendo a menina
medrosa,
chorona,
esperançosa e hipócrita
de quatro,
cinco,
seis anos,
sendo passada por uma janela às pressas";
a Primeira suspende uma placa dizendo:
"IGNORANDO FATOS POR TEMPO INDETERMINADO."

Poema #12

despedem-se
e a única coisa que ele diz é:
"sobreviva."
ela para,
encara as suas costas,
o vê partindo.
"sobreviva",
repete para si mesma.
e se faz uma promessa:
"eu vou sobreviver
apenas para provar a você que consigo."

Poema #11

quando o seu corpo fica doente a sua alma também adoece?
ou o corpo enfermo é a exteriorização da doença da alma?